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A Reclamação nº 36.476/SP como obstáculo ao sistema de precedentes do NCPC

A reclamação nº 36.476/SP como obstáculo ao sistema de precedentes do NCPC/15

A reclamação tem como função assegurar a observância de alguns dos pronunciamentos vinculantes. O writ que será analisado vai de encontro com a sua finalidade e fere um comando legal expresso.

Contextualizando, a reclamação supra tem como objeto a decisão emanada pelo TJ/SP, que, em tese, não teria aplicado o entendimento firmado pelo REsp 1.301.989/RS, julgado em sede de recursos repetitivos, e que originou o Tema Repetitivo 658[1]. O fundamento utilizado para a propositura é a hipótese constante no art. 988, IV, do Código de Processo Civil de 2015, que traz, In Verbis:

Art. 988. Caberá reclamação da parte interessada ou do Ministério Público para:

IV – garantir a observância de acórdão proferido em julgamento de incidente de resolução de demandas repetitivas ou de incidente de assunção de competência;  

 Nesse ponto, faz-se imprescindível destacar que, em conformidade com o dispositivo, fulcro da  Reclamação nº 36.476 – SP (2018/0233708-8), o Enunciado 138 II da Jornada de Direito Processual Civil do Conselho da Justiça Federal emana o seguinte[2]:

É cabível reclamação contra acórdão que aplicou indevidamente tese jurídica firmada em acórdão proferido em julgamento de recursos extraordinário ou especial repetitivos, após o esgotamento das instâncias ordinárias, por analogia ao quanto previsto no art. 988, § 4º, do CPC (grifo meu).

Ora, mediante o posicionamento jurisprudencial, que já fora antecipado, resta evidente o descompasso entre o julgado objeto de análise, o posicionamento doutrinário, que será exposto a seguir, e as fontes do direito. Demonstrada, de antemão, a divergência, vejamos os deslindes do julgado.

Diante da relevância da controvérsia em questão, com objetivo de uniformizar o entendimento, a 2ª Seção decidiu, em 26/06/2019, pela afetação para a Corte especial. Por maioria, a Corte indeferiu a petição inicial da reclamação, extinguindo o processo sem resolução do mérito. O voto da brilhante e eminente Rel. Min. Nancy Andrighi, da qual ouso discordar, foi acompanhado pela maioria. A relatora iniciou o seu voto explicando a função e a origem da reclamação, esta que não pode servir de sucedâneo de recurso próprio já interposto ou não conhecido[3], o tratamento do instituto antes da vigência do CPC/15 e as modificações feitas pela Lei nº 13.256/16, que, em especial, alterou o inciso IV, do art. 988 do CPC/15, o qual possuía a seguinte redação: “garantir a observância de enunciado de súmula vinculante e de precedente proferido em julgamento de casos repetitivos ou em incidente de assunção de competência”. A nova redação dada, conforme já explicitado anteriormente, é a que fundamenta a Reclamação ora em foco.

 Em segunda análise, e aqui, aparentemente, adentra-se no cerne do entendimento firmado, é da alteração do §5º do art. 988 do CPC/15. A redação anterior, que foi modificada pela Lei nº 13.256/16 previa o seguinte: “É inadmissível a reclamação proposta após o trânsito em julgado da decisão”. A alteração trouxe a seguinte nova redação:

§ 5º É inadmissível a reclamação:

I – proposta após o trânsito em julgado da decisão reclamada

II – proposta para garantir a observância de acórdão de recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida ou de acórdão proferido em julgamento de recursos extraordinário ou especial repetitivos, quando não esgotadas as instâncias ordinárias. (grifo meu).      

Diante dessas modificações, a Min. Relatora concluiu pelo seguinte[4]:

Quer dizer, no mesmo ato normativo, o legislador visivelmente excluiu uma hipótese de cabimento da reclamação e, passo seguinte, regulamentou essa hipótese que acabara de excluir, agregando-lhe um pressuposto de admissibilidade.

Ora, sob um ponto de vista lógico, essas duas modificações são inconciliáveis entre si.

Consequentemente, apenas da conjugação da redação atual dos incisos do art. 988 e do inciso II do parágrafo 5º, não é possível extrair, com segurança, conclusão quanto ao cabimento ou não, da reclamação que visa à observância de tese proferida em recursos especial ou extraordinários repetitivos.

Por isso, mostra-se impositiva a investigação de outros elementos interpretativos que  conduzam à solução da questão.

Com a devida vênia, excluída, pelo menos a princípio, a discussão sobre qual seria a melhor exegese atribuída aos novos dispositivos ou sobre a atecnia do legislador, quanto a não observância da Lei Complementar n. 95/98[5], não há vedação alguma quanto ao cabimento da reclamação contra acórdão que aplicou, de maneira indevida, tese jurídica consolidada em acórdão proferido em julgamento de recurso especial repetitivo. A nova redação, na verdade, apenas prevê uma restrição, que é a da inadmissibilidade da reclamação, quando não esgotadas as instâncias ordinárias. Em consonância com o cabimento da reclamação no caso em aresto, o próprio §1º do art. 988 do CPC prevê o seguinte: a reclamação pode ser proposta perante qualquer tribunal, e seu julgamento compete ao órgão jurisdicional cuja competência se busca preservar ou cuja autoridade se pretenda garantir. Ademais, se fosse caso de não aplicação da norma, deveria haver a declaração de inconstitucionalidade do art. 988, §5º do CPC/15, defendida pelo expoente doutrinador Pedro Lenza[6]. Contudo, não ocorreu. Saliente-se ainda, que mesmo entendendo pela inconstitucionalidade dos dispositivos, o doutrinador não nega que há o comando do dispositivo para[7]:

garantir a observância da tese jurídica extraída de acórdão de recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida ou de acórdão proferido em julgamento de recursos extraordinário ou especial repetitivos, quando esgotadas as instâncias ordinárias (art. 988, § 5.º, II).

Diante da inobservância do disposto no comando do CPC/15, sem a declaração de inconstitucionalidade da norma, o Exmo. Min. Og Fernandes ponderou o seguinte, em seu voto vencido[8]:

Em arremate, entendo que afastar, a pretexto de interpretar, sem a devida declaração de inconstitucionalidade, a aplicação do inciso II do § 5º do art. 988 do Código de Processo Civil, tal como delineado no voto da em. Relatora, pode ensejar questionamentos acerca de eventual inobservância do art. 97 da CF/1988 e, ainda, de afronta ao verbete vinculante 10 da Súmula do STF, assim redigida: Viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público, afasta sua incidência, no todo ou em parte (grifo meu).

 Ainda sobre a questão, o doutrinador Georges Abboud  asseverou[9]: “Adicionalmente, a decisão é de cariz ativista, logo, contra legem, porque ignora o CPC 988 §5º II, sem realizar sua devida e motivada declaração de inconstitucionalidade”.

Superada, pelo menos por enquanto, a questão de que se há ou não dúvida quanto a previsão legal do cabimento da reclamação, a análise direciona-se ao próximo apontamento da eminente relatora. Em sequência, a Exma. Min. tratou do tópico “Do contexto político-jurídico da reforma operada pela Lei 13.256/2016”. A relatora recuperou preocupação anterior ao CPC/15, que ainda é contemporânea, sobre o impacto dos novos dispositivos para a atividade jurisdicional do STJ. Para tanto, disponibilizou a proposta original de redação do §5º do art. 988 do CPC/15, que previa:

§ 5º É inadmissível a reclamação:

I – proposta após o trânsito em julgado da decisão reclamada;

II – proposta perante o Supremo Tribunal Federal ou o Superior Tribunal de Justiça para garantir a observância de precedente de repercussão geral ou de recurso especial em questão repetitiva.

É de se concordar com o posicionamento da Ministra, de que a atividade jurisdicional resta prejudicada com a infinidade de processos que tramitam nos Tribunais Superiores, o que chega a ser desumano. Entretanto, não coaduno com o previsto na própria ementa[10] e que tem relação com tópico ora analisado. A própria sistemática do Novo Código de Processo Civil, por meio do artigo. 927, inciso III, prevê a ampliação do conceito de provimento judicial vinculante. In Verbis:

Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:

III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;

 Em certeira análise, como de costume, Georges Abboud evidencia o prejuízo ao próprio combate da litigiosidade, devido ao entendimento firmado pela Corte Especial. Nesse sentido[11]:

Com efeito, a própria ampliação do conceito de provimento vinculante pelo CPC 927 foi uma opção política clara no enfrentamento da litigiosidade repetitiva no Brasil. Recusar o manejo da reclamação para garantir a observância dos recursos especiais repetitivos, esvazia o conteúdo político e jurídica da regra prevista pelo CPC 927. Noutras palavras, falta de deferência do Judiciário com o produto legislado do Parlamento.

Devido ao próprio entendimento firmado pela Corte Especial, a própria sistemática e motivação do NCPC restou prejudicada, visto que também é disposto pelo art. 927, V do CPC:

Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:

V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.

Dessa forma, a Corte Especial deveras ceifou a possibilidade de cabimento da reclamação para questionar a não observância de teses firmadas em sede de recursos especiais repetitivos. Os incisos supra se autodestroem, visto que em primeiro momento há devida valorização pela observância dos entendimentos firmados, para, em momento posterior, obstaculizar a observância e proteção dos mesmos, por meio de decisão que limita a atuação protetiva por parte do Tribunal que emanou a decisão em sede de recursos repetitivos.


[1] Tema Repetitivo 658: Converte-se a obrigação de subscrever ações em perdas e danos multiplicando-se o número de ações devidas pela cotação destas no fechamento do pregão da Bolsa de Valores no dia do trânsito em julgado da ação de complementação de ações, com juros de mora desde a citação.

[2] Conselho da Justiça Federal. Enunciado nº 138. II Jornada de Direito Processual Civil, 2018. Disponível em: https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/1275#:~:text=%C3%89%20cab%C3%ADvel%20reclama%C3%A7%C3%A3o%20contra%20ac%C3%B3rd%C3%A3o,%2C%20%C2%A7%204%C2%BA%2C%20do%20CPC.

[3] CANOTILHO, J. J. Gomes et al. Comentários à Constituição do Brasil. 2. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 1559.

[4] (STJ – Rcl: 36476 SP 2018/0233708-8, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 05/02/2020, CE – CORTE ESPECIAL, Data de Publicação: DJe 06/03/2020). Pg. 21 e 22

[5] Isso porque, como princípio, o lugar em que determinada disposição é inserida no texto legal pode esclarecer algo a respeito da sua abrangência e alcance. As subpartes de um artigo – ou seja, as alíneas, incisos e parágrafos – não apresentam, todas, a mesma hierarquia e abrangência, devendo ser harmonizadas com o conteúdo principal contido no caput. Nessa linha, a Lei Complementar n. 95/98, ao dispor sobre a elaboração e redação das leis, estabelece em seu art. 11 que, visando à obtenção de ordem lógica: (i) expressa-se por meio dos parágrafos os aspectos complementares à norma enunciada no caput do artigo e as exceções à regra por este estabelecida e, ainda, (ii) promovem-se as discriminações e enumerações por meio dos incisos, alíneas e itens. Sob esse norte, verifica-se que, de fato, o art. 988 do CPC, ao pretender regular o cabimento da reclamação, se vale de incisos para enumerar as respectivas hipóteses (incisos I a IV), utilizando parágrafos para regular outros aspectos relacionados ao cabimento, bem como para estabelecer exceções. Por exemplo, o parágrafo 1º dispõe sobre o cabimento perante qualquer Tribunal – complementando, portanto, o caput –, e o próprio parágrafo 5º, em seu primeiro inciso, prevê uma exceção à regra do caput, dizendo ser inadmissível a reclamação proposta após o trânsito em julgado da decisão reclamada.

Nesse cenário, não se mostra coerente afirmar que o parágrafo 5º, inciso II, do art. 988 veicularia uma nova hipótese de cabimento da reclamação. Estas hipóteses, repise-se, foram elencadas pelos incisos do caput, sendo que, por outro lado, o parágrafo se inicia, ele próprio, anunciando que trataria de situações de inadmissibilidade da reclamação.

[6] Em nosso entender, essas regras de vinculação e o consequente cabimento da reclamação constitucional não poderiam ter sido introduzidos por legislação infraconstitucional, porque dependeriam, necessariamente, de emenda constitucional a prever outras hipóteses de decisões com efeito vinculante, além daquelas já previstas na Constituição. Como se sabe e já afirmamos anteriormente, na CF/88, o efeito vinculante (no caso, premissa para se falar nessa hipótese de cabimento da reclamação), somente se observa em razão das decisões em controle concentrado de constitucionalidade (art. 102, § 2.º), ou em razão de edição, revisão ou cancelamento de súmula vinculante (art. 103-A), regra essa, aliás, na linha do que sustentamos, introduzida pela EC n. 45/2004. Não podemos confundir efeitos processuais dos instrumentos elencados acima com ampliação das hipóteses de cabimento da reclamação constitucional (art. 102, I, “l”) para a garantia da autoridade das decisões dos tribunais.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 24ª Edição. Edição do Kindle: Editora Saraiva, 2020. p.514

[7] Ibidem, p. 514

[8] Reclamação nº 36.476 – SP (2018/0233708-8). p. 56 de 45. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/SiteAssets/documentos/noticias/Rcl%2036476.pdf

[9] ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro. 5 ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. p. 1037

[10] 6. De outro turno, a investigação do contexto jurídico-político em que editada a Lei 13.256/2016 revela que, dentre outras questões, a norma efetivamente visou ao fim da reclamação dirigida ao STJ e ao STF para o controle da aplicação dos acórdãos sobre questões repetitivas, tratando-se de opção de política judiciária para desafogar os trabalhos nas Cortes de superposição.

[11] ABBOUD, op. cit., p. 1035 e 1036.

Olá!