O acórdão paradigma a ser analisado tem a seguinte ementa:
PROCESSO CIVIL. RECURSO REPETITIVO. ART. 543-C DO CPC. FRAUDE DE EXECUÇÃO. EMBARGOS DE TERCEIRO. SÚMULA N. 375/STJ. CITAÇÃO VÁLIDA. NECESSIDADE. CIÊNCIA DE DEMANDA CAPAZ DE LEVAR O ALIENANTE À INSOLVÊNCIA. PROVA. ÔNUS DO CREDOR. REGISTRO DA PENHORA. ART. 659, § 4º, DO CPC. PRESUNÇÃO DE FRAUDE. ART. 615-A, § 3º, DO CPC. 1. Para fins do art. 543-c do CPC, firma-se a seguinte orientação: 1.1. É indispensável citação válida para configuração da fraude de execução, ressalvada a hipótese prevista no § 3º do art. 615-A do CPC. 1.2. O reconhecimento da fraude de execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente (Súmula n. 375/STJ). 1.3. A presunção de boa-fé é princípio geral de direito universalmente aceito, sendo milenar a parêmia: a boa-fé se presume; a má-fé se prova. 1.4. Inexistindo registro da penhora na matrícula do imóvel, é do credor o ônus da prova de que o terceiro adquirente tinha conhecimento de demanda capaz de levar o alienante à insolvência, sob pena de tornar-se letra morta o disposto no art. 659, § 4º, do CPC. 1.5. Conforme previsto no § 3º do art. 615-A do CPC, presume-se em fraude de execução a alienação ou oneração de bens realizada após a averbação referida no dispositivo. 2. Para a solução do caso concreto: 2.1. Aplicação da tese firmada. 2.2. Recurso especial provido para se anular o acórdão recorrido e a sentença e, consequentemente, determinar o prosseguimento do processo para a realização da instrução processual na forma requerida pelos recorrentes.
(STJ – REsp: 956943 PR 2007/0124251-8, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 20/08/2014, CE – CORTE ESPECIAL, Data de Publicação: DJe 01/12/2014)
A Rel. Min. Nancy Andrighi iniciou o seu voto tecendo algumas considerações, quanto a temática da fraude à execução. Afirmou que o assunto não abrange apenas o interesse particular dos credores, visto que está compreendido também o interesse público, devido a afronta direta à dignidade e ao respeito à justiça.
O julgado é anterior a vigência do Novo Código de Processo Civil. Portanto, o intuito é tratar do tema fraude à execução a partir de uma visão do Código anterior, para então discorrer sobre as mudanças perpetradas pelo que está em vigor. Vejamos qual era a redação correspondente ao Art. 792 do NCPC:
Art. 593. Considera-se em fraude de execução a alienação ou oneração de bens:
I – quando sobre eles pender ação fundada em direito real;
II – quando, ao tempo da alienação ou oneração, corria contra o devedor demanda capaz de reduzi-lo à insolvência;
III – nos demais casos expressos em lei.
Assim como apontado pela eminente Ministra, as principais indagações sobre o tema, à época, eram as seguintes: determinar quem deve suportar o ônus probatório da ciência ou não do terceiro adquirente sobre a fraude e delimitar o momento em que a alienação pode ser considerada fraude à execução.
Para tanto, faz-se necessário destacar a previsão da Súmula 375 do STJ:
O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente
A Súmula consagrou que a fraude à execução, para que seja reconhecida, depende da má-fé do terceiro adquirente e do registro da penhora do bem alienado. Caberia ao credor o ônus de provar que o terceiro tinha ciência de que o titular estava impedido de alienar a coisa ou de que havia demanda capaz de levá-lo à insolvência. Veremos se ainda há aplicação integral do entendimento.
A Ministra indica que há necessidade de rever o seu próprio entendimento e, consequentemente, o que prevê o Verbete Sumular. À frente será retratado o porquê dessa necessidade.
Sobre o momento em que a alienação pode configurar a fraude à execução, a Ministra expôs algumas considerações. Quanto à citação, é possível depreender dos precedentes do Superior Tribunal de Justiça, que não há fraude a execução quando a alienação ocorrer antes da citação válida. Entretanto, há uma ressalva, quanto à ciência dos envolvidos. Vejamos o precedente indicado:
“(…) se ficar provado que antes da citação, já estavam alienantes e donatários cientes da demanda, não há como afastar a conclusão da existência de fraude” (REsp 824.520/SP, 4ª Turma, Rel. Min. Fernando Gonçalves, DJe de 01.12.2008)
Com o intuito de delimitar a extensão do julgado, a Ministra afirmou que não há aplicação do decisum às fraudes em execuções fiscais e tampouco às de alienação de bens móveis, que não exigem certidões dos cartórios. Será demonstrado que a mudança do NCPC não atingiu tais situações, em que os bens não estão sujeitos a registro. Entretanto, alterou de maneira significativa a questão quanto ao onus probandi
Antes de adentrar nas alterações, serão retratadas algumas considerações do julgado sobre a configuração da fraude à execução.
I – A presunção de má-fé do terceiro adquirente
A relatora ponderou que o ônus da prova da inocorrência dos pressupostos da fraude de execução é da parte contrária, conforme previa o art. 334, IV do CPC/73. Nesse esteio, caberia ao terceiro adquirente provar que com o ato (alienação ou oneração), o devedor não ficou reduzido à insolvência ou a demonstração de outra causa para que se presuma a fraude.
II – A distribuição dinâmica do ônus da prova
Sobre o tema, a relatora citou a manifestação da OAB à época. No caso da penhora não ter sido registrada na matrícula do imóvel, a distribuição do ônus de provar a ciência da pendência da ação é que resolveria a questão. Citou-se a teoria da distribuição dinâmica, em que o ônus recairia sobre quem tivesse as melhores condições de produzir a prova. Conforme os dizeres de Humberto Theodor Junior[1]:
(…) conforme as particularidades da causa e segundo a evolução do processo, o Juiz pode deparar-se com situações fáticas duvidosas em que a automática aplicação da distribuição legal do ônus probandi não se mostra razoável para conduzi-lo a uma segura convicção acerca da verdade real.
A aplicação dessa teoria, no caso da alienação de bem imóvel em fraude de à execução, indica que o terceiro adquirente possui condições de demonstrar que agiu de boa-fé. Em contrapartida, a comprovação do exequente de demonstrar o conluio entre comprador e executado, seria mais trabalhosa. Ao citar o REsp 618.625//SC, a Rel. Min. Nancy Andrighi destacou o seguinte: “a apresentação das referidas certidões, no ato da lavratura de escrituras públicas relativas a imóveis, é obrigatória, ficando, ainda arquivadas junto ao respectivo Cartório, no original ou em cópias autenticadas”. Tratando da relevância da averbação, distinguindo as situações envolvendo bens imóveis e praticamente todos os bens móveis, como será retratado a seguir, o doutrinador Cassio Scarpinella Bueno nos proporciona o seguinte ensinamento[2]:
A função da averbação, vale a ênfase, é a de viabilizar a documentação relativa à existência de pedido de concretização da tutela jurisdicional executiva perante os órgãos de registro de determinadas classes de bens. Com tal providência, criam-se condições mais objetivas, quase que imediatas, de que aquele bem não seja adquirido por terceiros de boa-fé e, com isso, evitadas ou, pelo menos, bastante reduzidas as hipóteses de fraude à execução. Não se trata, contudo, de uma nova “condição” ou de uma nova “exigência” para que se verifique, em cada caso concreto, a ocorrência da fraude à execução. Tanto assim que, se o bem alienado pelo executado não for passível de registro (é o que se dá, por exemplo, com um eletrodoméstico ou com um televisor), nem por isso deixará de ocorrer fraude à execução com fundamento no inciso IV do art. 792.
Sobre os entendimentos retratados, vale a pena citar a atual previsão do NCPC e do entendimento firmado pela II Jornada de Direito Processual Civil, em seu Enunciado 149. Vejamos:
Art. 792. A alienação ou a oneração de bem é considerada fraude à execução:
§ 2º No caso de aquisição de bem não sujeito a registro, o terceiro adquirente tem o ônus de provar que adotou as cautelas necessárias para a aquisição, mediante a exibição das certidões pertinentes, obtidas no domicílio do vendedor e no local onde se encontra o bem.
(…)
Enunciado 149. A falta de averbação da pendência de processo ou de existência de hipoteca judiciária ou de constrição judicial sobre bem no registro de imóveis não impede que o exequente comprove a má-fé do terceiro que tenha adquirido a propriedade ou qualquer outro direito real sobre o bem.
Através da inovação do NCPC, o ônus de comprovar a boa-fé se tornou do terceiro adquirente, assim como ensina Daniel Amorim Assumpção Neves[3]:
O entendimento está parcialmente superado pela previsão contida no §2º do art. 792 do CPC. Afinal, pelo dispositivo legal o ônus de provar a boa-fé passou a ser do terceiro adquirente. A questão é apenas definir a abrangência dessa superação parcial. Nos termos do dispositivo legal mencionado, no caso de aquisição de bem não sujeito a registro, o terceiro adquirente tem o ônus de provar que adotou as cautelas necessárias para a aquisição, mediante a exibição das certidões pertinentes, obtidas no domicílio do vendedor
Portanto, a definição de bem não sujeito a registro é que define o alcance do dispositivo legal. Se considerarmos os bens que nunca poderão vir a ser registrados, por não existir tal cadastro, a grande maioria dos bens móveis se encaixaria nessa situação. Haveria também a possibilidade de interpretar, que além desses bens que nunca poderão vir a ser registrados, estariam abrangidos pelo dispositivo àqueles que não podem ser registrados, justamente por ainda não terem sido penhorados. Assim como também assevera o doutrinador: “Nesse caso o exequente só teria o ônus da prova se por descaso – ou qualquer outro motivo – tiver deixado de registrar a penhora.
Retornado aos termos do julgado ora em análise:
III – Sobre a presunção absoluta de má-fe sobre o registro da penhora e a presunção relativa de má-fé do terceiro adquirente
Sobre a questão, a Ministra recapitula a previsão da Súmula 375 do STJ, ao enumerar situações que caracterizariam a fraude. No caso do registro da penhora do bem alienado, haveria presunção absoluta, já no caso da prova de má-fé do terceiro adquirente, trata-se de presunção relativa.
IV – Do momento caracterizador da fraude de execução
Vejamos a previsão do Art. 593 do CPC/73:
Art. 593. Considera-se em fraude de execução a alienação ou oneração de bens:
I – quando sobre eles pender ação fundada em direito real;
II – quando, ao tempo da alienação ou oneração, corria contra o devedor demanda capaz de reduzi-lo à insolvência;
III – nos demais casos expressos em lei.
O dispositivo permitia com que se tivessem interpretações distintas. A configuração ocorreria da data da distribuição da ação ou da citação válida do réu? Conforme o entendimento da relatora, a distribuição, por si só, já permite com que seja identificada a existência do processo. O ato citatório não seria, portanto, requisito. A ministra, na ocasião, fez alusão ao art. 263 do CPC/73, em que se consideraria proposta quando a inicial fosse despachada, ou simplesmente distribuída. Sobre a questão, será retratado um desdobramento dessa regra, no próximo acórdão a ser analisado.
Concluindo, o entendimento firmado pela Ministra foi de que “(…) a averbação da penhora na matrícula do imóvel gera presunção absoluta da existência de fraude de execução na alienação do respectivo bem. Por outro lado, ausente prova da boa-fé do terceiro adquirente, presume-se a existência de fraude de execução na alienação do respectivo bem imóvel”. Portanto, a relatora considerou que, sendo a orientação firmada retratada em processo repetitivo, a Súmula 375/STJ necessitava de revisão. Por maioria, foi dado provimento ao recurso especial.
II – AgInt no RECURSO ESPECIAL Nº 1.885.750 – AM (2020/0182626-0)
O segundo acórdão que será analisado tem a seguinte ementa:
PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. CHEQUE. FRAUDE À EXECUÇÃO CONFIGURADA. TRANSFERÊNCIA DE BENS DE ASCENDENTE PARA DESCENDENTE. AGRAVO INTERNO IMPROVIDO. 1. Consoante entendimento desta Corte Superior, considera-se fraude à execução a transferência de bens de ascendente para descendente quando, ao tempo da doação, tramitava contra o devedor alienante demanda capaz de reduzi-lo à insolvência. 2. A exegese do artigo 792, IV, do CPC/2015 (art. 593, II, do CPC/73), de se fixar a citação como momento a partir do qual estaria configurada a fraude de execução, exsurgiu com o nítido objetivo de proteger terceiros adquirentes de boa fé. No caso, não há terceiro de boa-fé a ser protegido, havendo elementos nos autos a indicar que a devedora doou intencionalmente e de má-fé todo o patrimônio ao próprio filho, quando ambos já tinham ciência da demanda capaz de reduzi-la à insolvência. 3. Assim, à vista das peculiaridades do caso concreto, bem delineadas na decisão do Juízo a quo, deve ser confirmada a decretação da fraude à execução, mesmo que o ato da transferência dos bens tenha ocorrido antes da citação formal da devedora no processo de execução. 4. Agravo interno a que se nega provimento.
(STJ – AgInt no REsp: 1885750 AM 2020/0182626-0, Relator: Ministro RAUL ARAÚJO, Data de Julgamento: 20/04/2021, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 28/04/2021)
A agravante alegou a inexistência de fraude à execução. A sua alegação foi de que os bens foram transferidos em data anterior à citação, na ação de execução e na ação de consignação em pagamento. Ademais, que não havia registro da penhora dos bens. Trata-se de um caso deveras curioso, visto que a fraude à execução tem origem na doação dos bens de ascendente para descendente. Por unanimidade, a Quarta Turma negou provimento ao agravo interno.
O entendimento do Min. Rel. Raul Araújo, de que se configurou a fraude à execução, se deu sob o argumento de que quando os bens foram alienados, tramitava contra a ascendente ação com potencial de reduzi-la à insolvência.
Nesse sentido, mesmo que a doação tenha sido realizada antes da citação válida, é possível depreender que a motivação do ato decorre simplesmente da intenção de blindar o patrimônio dentro do núcleo familiar. Dentre os precedentes, o relator citou o seguinte:
AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL – EMBARGOS DE TERCEIRO – DECISÃO MONOCRÁTICA QUE NEGOU PROVIMENTO AO RECLAMO. INSURGÊNCIA RECURSAL DOS EMBARGANTES. 1. “Considera-se em fraude de execução a doação de imóvel ao descendente quando, ao tempo da doação, corria contra os devedores demanda capaz de reduzi-los à insolvência. A jurisprudência do STJ reconhece a importante proteção aos terceiros que adquirem de boa fé bem imóvel sem saber de ação executiva movida em face do alienante em estado de insolvência. Entretanto, essa proteção não se justifica quando o doador procura blindar seu patrimônio dentro da própria família mediante a doação gratuita de seus bens para seu descendente, com objetivo de fraudar a execução já em curso.” (REsp 1600111/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 27/09/2016, DJe 07/10/2016).
Insta ressaltar ainda o seguinte ensinamento do doutrinador Ernane Fidélis dos Santos[4], sobre as atitudes do devedor, quando atua de má-fé:
O devedor pode, no correr do processo de conhecimento, ou mesmo no executório, praticar atos que objetivem fraudar a execução, seja alienando, seja onerando bens, isto é, vendendo, doando ou constituindo direito real sobre eles, como ocorre com a hipoteca e o penhor (art. 790, V). Poderá também, sem que haja qualquer ação proposta, haver fraude contra o credor, ou seja, quando se aliena bens ou o grava, em conluio com o terceiro, para fraudar o credor (CC/2002, arts. 158 e s.). Na primeira hipótese, há fraude à execução, de cunho eminentemente processual, contra a própria jurisdição; na segunda, a fraude tem característica de direito material e é praticada contra o credor.
Vejamos a previsão do Art. 792, inciso IV, do Código de Processo Civil. In Verbis:
Art. 792. A alienação ou a oneração de bem é considerada fraude à execução:
IV – quando, ao tempo da alienação ou da oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência
A previsão do dispositivo supra é uma proteção ao terceiro adquirente de boa-fé. Entretanto, não se trata do presente caso. A doação ocorreu exclusivamente com intuito de blindar o patrimônio, de má-fé. Tanto a ascendente quanto o descendente já tinham ciência da execução em questão, mesmo que não houvesse citação válida. Ora, verdade é que ninguém pode se beneficiar da própria torpeza. Seria calamitoso considerar que não ocorreu fraude à execução.
Em sequência, houve nova alienação de um veículo, para uma terceira pessoa, de boa-fé. O Relator asseverou que como a alienação não foi realizada pela executada, tratando-se de sucessivas vendas, é necessário amparar aquele que agiu com probidade. Nesse sentido, não existindo qualquer indicação de um conluio para fraudar a execução, não haveria como afetar a venda posterior.
[1] THEODORO JR. Humberto – Curso de direito processual civil, vol. II. Rio de Janeiro: Forense, 43ª ed., 2008, p. 191.
[2] BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil – Vol .3 – 11ª edição 2022 (p. 198). Saraiva Jur. Edição do Kindle.
[3] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil – Volume Único – 14.ed. – São Paulo: Ed. Juspodivm, 2022, p. 1178.
[4] SANTOS, Ernane Fidélis D. Manual de Direito Processual Civil, Volume 2, 16ª Edição. Editora Saraiva, 2017.